Interpretação vs Imposição no RPG de mesa
O entendimento errado do real atrapalhando o imaginário
Se você já jogou ou joga RPG, já deve ter percebido momentos, falas ou rumos narrativos onde o discorrido mais era baseado na pessoa por trás daquilo, fora do jogo, do que de fato pelo personagem ou crônica/campanha. Pra você que não é do nicho, não tem problema, meu caro(a). RPG nada mais é do que um jogo de interpretação de personagens que flui através de uma narrativa, esta por sua vez se estabelece por um sistema (conjunto de regras do jogo) e cenário (ambientação, mundo, gênero, estilo do jogo). E pra você que não é do ramo, vou te falar heim… às vezes, essas coisas acontecem mesmo. Logo, saturam e incomodam.
E isso é o que os RPGistas chamam de metagame – ou antijogo, ao qual prefiro – e se trata de meios para fins que não possuem contexto para se desenrolarem, seja por parte do jogador (pessoa que interpreta um dos personagens) ou do mestre (narrador, posição arbitrária e de condução narrativa/temática). Das mesas de onde vim, usa-se os termos “ongame” e “offgame” para classificar o que o jogador sabe e o que seu personagem sabe, ou até o que ambos têm conhecimento no que concerne à aventura, crônica, imersão. O ongame é aquilo que está ligado ao que ocorre no jogo em si, para os personagens, sejam dos jogadores ou NPCs (personagens do narrador, todos que não são dos players), certamente offgame diz respeito a tudo que ocorre na mesa, entre os jogadores e narrador, no nosso mundo e fora da imersão daquela história. Passados tais esclarecimentos, sigamos.
A imposição em si
Às vezes ligado ao antijogo, às vezes não, ocorre, por variados motivos o mesclar do on com o offgame, de uma forma que gera confusão, disfarce, incômodo. Muitas das vezes, mútuo em uma mesa de RPG. E quando digo “às vezes não”, sobre acontecer como metagame, falo de ocorrências que extravasam o uso de informações offgame da mesa, para se beneficiar na sua posição nela, seja jogador ou narrador. Para ficar claro, vamos a um exemplo:
Uma mesa, jogadores e narrador, resolveram que vão se divertir com uma aventura em uma terra de fantasia medieval. Um dos jogadores resolve que será um membro do clero, seja ele sacerdote ou paladino. Resolve que seu passado até ali fomentou uma fé avassaladora e cega, ora nociva e inquisitiva. Ok! O personagem não tem obrigação de agradar toooOOOOooodas as outras pessoas daquela história. O bom, o que realmente conta, é que o personagem seja interessante, profundo, bem construído e que tenha por parte do player uma boa interpretação, um bom roleplay.
Olhando mais de perto
Porém, e independente de personagens contraditórios ao servo divino no grupo da aventura, vamos supor que o player SEJA, off game, um drástico religioso. Até aí, ok também! Isso é da vida desse jogador, para mesa ele tem de trazer lanche e respeito. Fim.
Em um segundo porém, esse tal jogador acaba por implementar suas perspectivas na mesa, de forma a não tratá-las apenas como interpretação ou perspectiva daquele servo divino, fictício. E aí entra a questão de mesclar o on com o offgame quando, de repente, o jogador fala, aponta, pitaqueia quanto a esse aspecto. Principalmente, se nem alinhamento, natureza, background, personalidade o clerical tiver para tais perspectivas ou atos.
E esse foi apenas um exemplo. Pode ser que se trate de um caso de má educação, verbal ou de qualquer outra forma. Pode se tratar de casos de desatenção, onde o jogador apenas quer “ganhar o jogo”, criando qualquer personagem que “vença” tudo pelo caminho e fica na orla da mesa mexendo no celular. Outro caso corriqueiro, e aqui quase sempre movido por características off para uma suposta legitimação no on, temos os casos de assédio ou sexismo. De qualquer sexo para qualquer sexo, ainda que o erro ocorra mais por parte dos homens – maioria no RPG de mesa como praticantes – nesse exemplo.
O outro lado do mesmo tibar
Esses são os casos onde a imposição de aspectos do jogador, ou do narrador, contaminam o abstrato, a imersão, a interpretação no RPG. Curiosa, e tão prejudicial para o jogo quanto, ocorre também o inverso. Ficou confuso(a)? Te explico. Vem!
Vamos supor que determinado jogador faça um bárbaro extremamente machista. Ele é abusador, quem sabe até violador. Traços antagônicos em boa parte das aventuras que se tenha por aí. E com certeza, antagônico no senso comum. Sabido é pelos RPGistas devidamente amadurecidos que criar e desenvolver um vilão não é algo ruim, pelo contrário, desde que se tenha um bom roleplay e como já mencionado, uma boa maturidade. Um personagem pode ser odioso, e ainda sim pode ser um bom personagem, pois o que faz dele algo bom é ser denso, bem interpretado, memorável dentro da proposta a qual se presta. Até aí, ok!
Todavia, nesse grupo, os demais players não entendem isso e passam a segregar, agir de forma diferente, talvez maltratar, o player que offgame, é uma ótima pessoa. Aí está o tal caso inverso onde a falta de tato vem dos demais sobre a não separação da interpretação da imposição. Aqui a imposição está ocorrendo por parte deles (grupo) agora, provavelmente imperceptível aos mesmos, totalmente passiva.
Conclusão e obviedades
Certamente, o grau de uma mesa deve ser discutido antes com todos, um trabalho do narrador para com seus jogadores. Se expõe sistema, cenário, estilo de trama. Se será algo mais aventuresco, road movie, conspiratório, gore, ou qualquer outro. Naturalmente isso acarreta também a explicação do nível de maturidade que tal trama irá requerer dos RPGistas respectivos. Daí pra frente, é questão de acordo e jogo rolar sem problemas.
As situações podem ser as mais horrendas, violentas, degeneradas possíveis – uma vez que certos cenários giram quase que exclusivamente para tais – mas isso tem de ser acordado e tem de ser ongame, não offgame. Seja o impositor um indivíduo que instaura maus hábitos do personagem para o mundo e convívio real, seja a imposição do coletivo para o indivíduo que não é compreendido por carência de amadurecimento dos demais e hipersensibilidade.
Espero que tenha sido proveitoso pra você! Que suas mesas sejam saudáveis, inteligentes e com imersão visceral! Seja isso metafórico ou puro gore trevoso. Boas rolagens e até a próxima, RPGistas!